A megalomania da franquia Avatar de James Cameron volta a estar no centro das atenções públicas na virada de 2022 pra 2023. Com O Caminho da Água, oportunamente lançado em período de alta lucratividade potencial como é o natalino e de réveillon, temos agora acesso à 1ª das 4 sequências programadas para o filme mais rentável da história da 7ª arte, lançado em 2009 e já analisado por aqui.
13 anos depois, vemos assim eclodir no espaço social globalizado este fenômeno de massas não negligenciável: uma nova onda de Avatar-mania que, em sua esteira, vem fomentando também uma série de reverberações nos debates sócio-ambientais sobre a catástrofe climática, o ecocídio motivado por sanha extrativista, a poluição hídrica, a biodiversidade em declínio em meio à Sexta Extinção, além das relações conflagradas entre aquilo que Davi Kopenawa apelidou “o povo da mercadoria” (que habita o mundo industrializado) e os povos ditos originários (que defendem as florestas tropicais e os entornos dos biofílicos rios).
O retorno de Avatar à cena, e não apenas à cinematográfica mas a uma cena que transcende o domínio das artes e engloba um espaço global de deliberações que inclui os encontros da COP e as atividades do IPCC, vem para lançar ao mainstream uma espécie de vertente ecologista-pop, um stream de awareness a respeito da degradação das condições para a continuação da Teia da Vida tal como a conhecemos.
Ainda que não seja um livro de divulgação científica como os de Maude Barlow, uma das maiores referências globais sobre a geopolítica do “ouro azul”, Avatar 2 tem como primeiro de seus méritos frisar esta banalidade quase clichê, mas que tantos tendem a ignorar, inclusive por cegueira e ignorância voluntárias: sem água não há vida, “water connects all”. Para recuperar o verso inesquecível de Auden: “milhões já viveram sem amor, ninguém jamais viveu sem água.”
O cinema documental vem realizando incursões importantes neste território através de obras como Blue Gold, baseado em livro de Barlow, e Seaspiracy (continuação de Cowspiracy), mas sabemos que a penetração do audiovisual de não-ficção e pegada ativista é limitada. Em contraste, Avatar deve interessar-nos, inclusive mobilizando nossa criticidade, pois tem impacto tremendo sobre a consciência das massas em vários países e coloca-se explicitamente em defesa de uma outra compreensão das águas que não é aquela que preside à mentalidade da pesca em mega-escala ou da poluição inconsequente com plásticos e metais pesados.
A mania por Avatar é considerável, e alguns sintomas econômicos disto podem ser consultados no Box Office Mojo (o ano de 2022 nem acabou e o filme, em 14 dias, já faturou mais de 1 bilhão de dólares!). Nos dias que correm, dezenas de milhões de pessoas estão perfilando-se nas filas arrasa-quarteirão, pagando ingressos relativamente caros, pra acessar o que está sendo vendido como um dos maiores espetáculos da terra, um dos mais bem acabados frutos da indústria cinematográfica movida a CGI no mundo contemporâneo.
Qualquer um que se interesse pelos rumos do capitalismo, e no interior deste da indústria cultural, também deveria se interessar por um filme que custou 400 milhões de dólares para fazer e que tinha uma missão difícil para conseguir se pagar – tudo indica que conseguirá cumprir com folga seu intuito e não será um fiasco de bilheteria, nem será defenestrado pela crítica cult. Para além das equações econômicas, eis um filme que é mais do que mero entretenimento (apesar de obviamente sê-lo também, e de grande poder de sedução) – ele transcende o télos do entreter pela enormidade de sua pretensão “pedagógica”, de sua ambição de intervir no debate ecológico. É a isto que me refiro quando falo em megalomania.
Avalio que este projeto megalômano não irá naufragar tão cedo feito um Titanic fílmico como alguns profetas da flopada se apressaram em vaticinar. Na década corrente (2020-2029), teremos que conviver com Avatar. Parece-me relevante então abordar temas de psicologia social, buscar compreender porque o cinema tem tamanha capacidade de captura de nossa atenção e afetos, e porque continua sendo uma indústria de altíssima lucratividade e de custos de produção de uma exorbitância que também assombra.
Para além de uma análise da obra que fique presa dentro dela mesmo, quero pensar neste movimento de massas rumo às salas, esta busca massiva que fazemos por um consumo cultural que nos permite uma imersão em outro mundo, fantástico e repleto de ação e comoção, fabricado pelo que há de mais up-to-date em matéria de computação gráfica e efeitos especiais.
Digno de nota é que aqui estamos mergulhando em uma narrativa onde o lema ambientalista “não há Planeta B” perde sua validade. Quero dizer: milhões de pessoas estão voluntariamente se colocando nesta situação de estarem sentados numa sala escura, por mais de três horas, diante de um telão onde projetam-se dinâmicas mutações de imagens, para serem envolvidas por um espantoso input sensorial destinado a contar a longa saga do Planeta Pandora, invadido pelos humanos depois que estes foderam com o Planeta A. A degradação sem volta da Terra, nesta saga, não implica o fim da aventura humana, mas sim nos lança à nova época da colonização espacial que hoje tem em Mr. Elon Tesla-Twitter Musk um de seus acólitos mais famosos e com mais capital pra dispender.
É lá em Pandora – o Planeta B – onde ocorre um gigantesco clash de civilizações entre os humanos, “o Povo do Céu”, e as populações nativas do planeta por eles invadido. Evidentemente, surgem vestígios de obras cinematográficas anteriores, de Star Wars à trilogia Alien, mas o que Cameron parece tentar, de maneira insistente, é virar o debate público na direção da ecologia, no rumo de um embate de cosmovisões contraditórias: de um lado, a sabedoria Navi e seus bonds íntimos com a natureza viva, expressando uma biosimbiose que se manifesta na união colaborativa com os “dragões” por eles manejados e também com as criaturas aquáticas e reptílineas; em contraste, o mundo humano que está em crise na Terra de origem, tornada cada vez mais inabitável e irrespirável, manifesta-se sobretudo num investimento no ciborguismo bélico e nos mega-aparatos de destruição e extrativismo.
Este maniqueísmo, por seu esquematismo (Navis sábios e ecologistas, humanos estúpidos e ecocidas), merece ser criticado, sim – mas não deixa de ser interessante um certo anti-humanismo aqui presente, ou seja, a construção dos humanos como vilões, como força alienígena que é, na perspectiva dos Navi, portadora da hecatombe. Esta ideologia não é tão fácil de ser refutada, e penso também que certas “brisas decoloniais” sopram sim nesta obra que tantos certamente vão acusar de ser um agente do imperialismo cultural da indústria cinematográfica primeiro-mundista. Nada é tão simples: Avatar não pode ser desprezado como se não passasse de neo-colonialismo.
Futuramente, mais para o fim deste artigo, gostaria de abordar que tipo chave interpretativa de Avatar poderia nascer de adaptação da tese de Bruno Latour sobre a guerra entre humanos vs terranos. Considerando que há agora, na segunda parte do que está sendo previsto como um ciclo de 5 filmes, a introdução da aliança entre os Navi, o Povo da Floresta, com os povos da água, ou seja, com o pessoal de pele esverdeada que vive nos reefs. Isto amplia a Guerra dos Mundos do primeiro filme para abarcar ainda mais elementos da biodioversidade estonteante do planeta imaginário.
As ambições desta produção são gigantescas e o que vemos concretizado na tela, diante de nossos olhos equipados com óculos 3D, certamente revela uma perícia técnica e um domínio de linguagem cinematográfica de rara deslumbrância. Com desenho de som impactante e condução narrativa cativante a um nível Spielberguiano, com cenas de ação bem orquestradas e uma boa dose de melodrama envolvendo união familiar, luto pela perda de um filho e alianças para além da tribo de origem, Avatar 2 parece um bom candidato para o sucesso. Ou seja, saí do cinema achando que suas qualidades apontam para uma maior possibilidade de que Caminho das Águas torne-se mais um triunfo comercial monumental do que uma humilhante flopada. O tempo dirá – e o que nos interessa aqui, no momento, não é o rendimento na box office, mas uma análise crítica da ideologia que Avatar veicula.
De maneira subliminar, há um trabalho de atribuição de valores positivos e negativos em jogo. Uma análise semiótica mais apurada talvez possa revelar que Avatar busca positivar o pólo feminino e negativar o masculino – e, ainda que não enfrente de maneira alguma o debate racial, há também uma espécie de positivação da negritude e seus adereços. O cabelo rasta do avatar de Jake Sully é apenas um exemplo, mas várias outras ocorrências poderiam ser elencadas. Também há positivação de práticas, modos de vida e cosmovisões de povos tradicionais – neste caso, como sugerido por Hessel, dos povos da Polinésia.
A conexão com a biosfera, a capacidade de bonding, é atribuída sobretudo às figuras femininas – e a Kiri é emblema disto. O filme divulga a noção de uma awareness da interconexão entre os seres vivos, necessária de ser disseminada na cultura, e que tem também no menino-lobo Spider (o Mogli da saga Avatar?) como uma encarnação exótica de uma selvageria positiva – ele é descrito, sintomaticamente, com o adjetivo feral, que ultimamente vem sendo muito positivado na obra, por exemplo, de George Monbiot. Não está excluída a hipótese, pois, de que Avatar no futuro não apenas debata mais a fundo como também faça a apologia do que hoje é conhecido no mov. ambiental como re-wild, ou re-selvagização.
Em sua crítica em vídeo, a Isabela Boscov destacou que Cameron é fascinado pelo mundo subaquático e que no processo de produção fez os atores de fato mergulharem para filmar as cenas que revelam as águas biodiversas e policromas de Pandora; destaca ainda que ele é engajadão em causas relacionadas com a preservação ambiental e que tudo isto está plasmado no filme. Concordo que as cenas que representam o mundo debaixo d’água são o grande trunfo de Caminho da Água, mas a resenhista da revista Veja deixa passar dois elementos que me parecem cruciais: o que Cameron está tematizando é a conexão / bond inter-específica, ou seja, a conectividade inter-espécies.
Há na atualidade todo um campo de pesquisas, os animal studies, e as ciências humanas vem realizando trabalhos magistrais sobre a consciência dos polvos, sobre as espécies companheiras e sobre a inter-species ethics (ver, por ex., o excelente livro de C. Willett). O enredo pode levar-nos a refletir que os humanos terráqueos perderam desgraçadamente esta capacidade de relação significativa com outras espécies devido à extensão dos cânceres ideológicos, de tóxicas consequências práticas, que são o especismo e o carnismo.
Boscov também parece não notar que Cameron está lidando aqui com uma espécie de “lógica do Moby Dick”, ou seja, de algum modo está dialogando com a obra-prima de Melville e com o filme de Huston que o adaptou nos anos 1950. Aquela “baleiona” de Pandora, quando afronta o maquinário pesado humano, não revela algo semelhante à lógica que levou o Pequod ao naufrágio? O mega-animal não está se revoltando contra o poder opressor que lhe persegue, que lhe machuca, que lhe enfia ferros pontiagudos na carne?
Aqui temos a construção de uma espécie de reverência ao poderio de animais que alguns humanos seriam tentados a menosprezar como se não passassem de bestas-feras, mas que Avatar celebra como outras inteligências. Este mega-animal é descrito como mais inteligente que os humanos, dotado de mais neurônios do que nós, com uma “rede neural” em seu corpo que ultrapassa muito em complexidade aquela de que um organismo humano é dotado.
É aí que se joga o mais interessante debate de Avatar e que alguns críticos confinados à mentalidade capitalista-liberal não enxergam ou preferem não comentar: o antropocentrismo aqui foi chutado para escanteio, ainda que o Antropoceno esteja certamente em tela, ainda que em modelo exportação. São os humanos do Antropoceno, depois de terem fodido com a Terra, que invadem Pandora não apenas para roubar suas riquezas naturais abundantes – eles querem se apossar de uma espécie de elixir da eterna juventude, aquele líquido amarelado que extraem da “baleiona” e que, nesta mesma cena, é descrito como uma mercadoria valiosíssima, em contraste com a qual até o ouro e o petróleo empalidecem.
Algumas palavras de encerramento sobre o finado Latour: ele havia sugerido, sobretudo no Em Face de Gaia (livro que reúne suas Gifford Lectures), que estamos diante de uma nova Guerra dos Mundos. Não é mais aquela do paradigma Wellsiano – isto é, aquela que decorre do romance War of the Worlds que H. G. Wells publicou e depois Orson Welles adaptou para o rádio (com espantosas repercussões sociais) e que depois, já no séc. XXI, virou filme de Spielberg com Tom Cruise. Agora, a guerra é dos humanos do Antropoceno contra os terranos da aliança de Gaia. Os humanos ecocidas contra toda a biodiversidade da Terra.
De algum modo, Cameron parece estar transpondo esta mega-contradição para Pandora – e não há dúvida de que, considerado o grau de vilania que ele projeta na classe militar e sobretudo no calhorda perverso Coronel Miles Quaritch e seu respectivo avatar, o diretor já escolheu seu lado da trincheira. E está convocando as massas de espectadores para estarem com ele junto com o povo de Pandora, junto com o povo de Gaia. Parece que James Cameron, na conflagração descrita por Latour e que Viveiros de Castro/Danowski trabalham em Há Mundo Por Vir?, está ao lado da biosimbiose e da ética inter-específica dos povos de Pandora (que aqui atuam de maneira similar aos povos de Gaia) contra a hecatombe mecanizada e o genocídio extrativista dos humanos ciborguizados, enlouquecidos de macheza tóxica e fissurados em suas armas de destruição.
É no contexto desta conflagração epocal que os próximos Avatares virão se inserir – talvez os próximos cheguem em um mundo ainda mais propício a acolhê-los: será um mundo mais quente, com mais furacões e tsunamis, com os níveis dos mares subindo e engolindo megalópoles, com os gases de efeito estufa produzindo consequências catastróficas maiores do que as que hoje conhecemos, e onde a humanidade enfrentará a urgente meta de reconexão com a biosfera que está prefigurada pela sábia relação simbiótica dos Navi com os povos de Pandora.
Eduardo Carli
30/12/22
Leia também: Vulture – Plano Crítico – Omelete – Folha de S. Paulo – Escotilha.
Publicado em: 30/12/22
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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